Exposição: Concepção medieval do homem (Adaptação do texto do Lima vaz)
A antropologia medieval vai buscar seus temas e sua inspiração em três fontes principais que irão constituir as autoridades da vida intelectual da Idade Média:
- A Sagrada Escritura ou sacra pagina, autoridade maior e incontestada;
- Os Padres da Igreja dentre os quais se destaca a figura de Sto. Agostinho, referência privilegiada após a Escritura;
- Os filósofos e escritores gregos e latinos, dentre os quais Aristóteles se afirmará, a partir do século XIII, como o Philosophus (O filósofo)
É importante ter em conta que a concepção do homem evoluiu em estreita relação com o próprio desenvolvimento da civilização. Ora, em que pesem estereótipos historiográficos largamente difundidos, a civilização medieval conheceu uma evolução complexa e passou por profundas crises, nela já se delineando muitas das linhas que se prolongarão nos tempos modernos. Assim, a concepção do homem apresenta na Idade Média uma surpreendente riqueza que estudos recentes têm procurado explorar. No campo filosófico-teológico, a influência de Santo Agostinho é predominante até o século XII. Somada à influência dos escritos dionisianos (Ver: Link 1; ), que se torna também poderosa a partir do século IX, ela imprime às primeiras expressões da antropologia medieval traços neoplatônicos característicos que se integrarão naturalmente à estrutura do pensamento simbólico dominante até o século XII
O aristotelismo se imporá a partir do século XIII, mas a autoridade de Agostinho continua elevada acima de todas as outras e só inferior à da sacra pagina. Assim, a antropologia medieval, em seu apogeu, mostrará uma tensão permanente entre aristotelismo e agostinismo, cujo equilíbrio é assegurado pela tradição bíblico-cristã. A originalidade desse equilíbrio manifesta-se nos traços fundamentais da antropologia cristão-medieval, na qual assistimos a uma transposição, em contexto espiritual e conceptual modelado pela herança bíblico-cristã, das oposições que assinalaram o pensamento antropológico na tradição filosófica clássica. Constitui-se, assim, uma filosofia cristã do homem, a cujas exigências de inteligibilidade deverão submeter-se as categorias antropológicas herdadas da filosofia antiga. Nela, duas questões adquirem particular relevo: a da historicidade e a da corporalidade do homem.
No primeiro caso, a "natureza” humana aparece estruturalmente inserida numa situação histórica que é determinante do destino dos indivíduos e que, segundo a visão agostiniana, orienta toda a história: A idéia de salvação.
No segundo caso, ainda aqui na trilha da reflexão antropológica de Agostinho, a compreensão do corpo na unidade de essência do homem permanece uma exigência fundamental da doutrina da criação e dos pressupostos antropológicos do mistério da Encarnação do Verbo.
Assim, o problema da união da alma e do corpo torna-se “o ponto sobre o qual, mesmo em teologia, os problemas encontraram posição e as mentalidades sua clivagem”. A síntese mais bem-sucedida da antropologia medieval, vamos encontrá-la no pensamento de São Tomás de Aquino (1225-1274). Nela convergem as grandes teses da antropologia clássica e da antropologia bíblico-cristã, encontrando finalmente seu ponto ideal de equilíbrio. Dois termos consagrados na historiografia da filosofia medieval encerram as complexas correntes de idéias que vieram confluir na antropologia tomista: o agostinismo e o aristotelismo. Sobretudo o aristotelismo, que São Tomás de Aquino procurou reconstituir em sua autenticidade original nos comentários aos textos de Aristóteles, chega de fato ao Ocidente latino nos séculos XII e XIII acompanhado de elementos provindos de outras correntes da filosofia grega, sobretudo do neoplatonismo. A antropologia tomásica pode ser situada, assim, um espaço conceptual delimitado por três coordenadas:
- A concepção clássica do homem como: Animal Racional.
- A concepção neoplatônica do homem na hierarquia dos seres, como ser fronteiriço entre o espiritual e o corporal.
- A concepção bíblica do homem como criatura, imagem e semelhança de Deus.
Consideremos cada um desses aspectos: Na perspectiva da definição clássica, o grande problema com o qual se defronta São Tomás de Aquino é o da unidade do homem ou o da relação da alma racional com o corpo, que se apresenta como um dos temas mais vivamente polêmicos da filosofia medieval. A tese da pluralidade das formas substanciais hierarquizadas no mesmo composto atraía muitas simpatias e parecia a mais apta a preservar a natureza espiritual da alma intelectiva. Mas Tomás de Aquino a rejeita decididamente mantendo, com Aristóteles, a unidade da forma substancial e, portanto, a rigorosa unidade hilemórfica do homem (Origem Grega - Hilemórfica: matéria e forma. Junção de duas palavras para a formação significante de uma.). Ao mesmo tempo, no entanto, mantém a estrita espiritualidade da alma e, portanto, sua essencial transcendência sobre a matéria e sua criação imediata por Deus. Sendo, porém, a anima intellectiva (alma racional) a única forma substancial do composto humano, a diferença específica rationale da definição clássica determina todo o homem, assegurando assim a unidade antropológica exigida pela tradição bíblico-cristã.
A alma intelectiva é, pois, a enteléqueia do corpo ou o ato que o integra na perfeição essencial do ser-homem, e de sua unicidade deriva a unidade do agir e do fazer humanos, conclusão de grande importância para a ética tomásica (ética de Tomás de Aquino ).
Da unidade profunda do homem fluem, portanto, suas faculdades de agir e fazer (potentiae activae) que, para São Tomás de Aquino, são distintas da alma, estando esta, como princípio primeiro da unidade e da perfeição do homem, sempre em ato (esse “em ato” é uma referência ao “ato e potência”, onde o ato representa o “feito, o presente o efetivado” e a potência representa a possibilidade do vir a ser). O racional como diferença específica do homem designa primeiramente a razão discursiva (ratio), forma do conhecimento intelectual inferior à inteligência propriamente dita (intellectus) que é própria dos espíritos puros, mas da qual também o homem participa. O lugar do homem na hierarquia dos seres aparece a São Tomás de Aquino essencialmente determinado por sua natureza racional.
É em função desse problema que a definição do homem como animal racional, além de seu interesse teórico, adquire igualmente um significado prático fundamental. Com efeito, é a partir da racionalidade como diferença específica que o homem, encontrando seu lugar na natureza, pode empreender a busca do seu fim. A eudaimonia do homem (Ver Eudaimonia) deve ser proporcionada à sua razão: essa conclusão perfeitamente aristotélica entra em tensão, no contexto em que São Tomás de Aquino a demonstra, com a revelação cristã do fim sobrenatural do homem, abrindo-se aqui um dos capítulos mais importantes e mais discutidos da antropologia tomásica.
No que diz respeito à sua situação no universo, o predicado da racionalidade confere ao homem a característica singular de se encontrar na fronteira do espiritual e do corporal, do tempo e da eternidade. O tema bíblico do homem imagem de Deus é tratado por São Tomás em contexto teológico. Ele supõe, no entanto, uma filosofia do homem em sua relação com Deus que tem como tema fundamental a idéia da perfeição relativa do homem participante da perfeição absoluta de Deus, da qual decorre a capacidade de conhecer a verdade e de agir moralmente segundo o bem. É essa a versão tomásica da autárqueia (autoromia - dar a lei a sí mesmo) ou independência do homem na ordem natural segundo a tradição clássica, mas que admite, em contexto cristão, uma essencial capacidade de abrir-se à iniciativa gratuita de Deus que funda a ordem sobrenatural.
É a metafísica da participação que está, pois, nos fundamentos filosóficos do tema bíblico da imagem tal como São Tomás de Aquino o pensa e integra em sua antropologia. Ela culmina na afirmação da intrínseca inteligibilidade do existir da criatura em sua dependência (relação de criaturalidade) do existir absoluto de Deus. O tema da imagem (imagem e semelhança de Deus) pode ser assim considerado o centro irradiador da antropologia tomásica, pois é em tomo dele que se articulam os três planos da natureza, da graça e da glória, que são os três estados da existência humana considerada filosoficamente em sua essência e teologicamente em sua história. Tomás de Aquino realiza assim uma síntese admiravelmente equilibrada e profunda da tradição clássica e da tradição cristã no campo da antropologia.
Nos séculos que se seguiram até o fim da Idade Média, assistimos ao aparecimento de novas tendências do pensamento filosófico e teológico orientadas em sentido oposto à síntese tomásica em antropologia. O voluntarismo inaugurado por Duns Escoto no século XIV, o nominalismo que prevaleceu no século XV operaram no sentido da desagregação da síntese medieval entre filosofia e teologia, percorrendo um caminho que irá conduzir à filosofia moderna e a uma nova concepção do homem. É preciso não esquecer, por outro lado, que ao longo do desenvolvimento da civilização medieval o concurso de múltiplas causas conduz lentamente à reabilitação do homo artifex (?), rejeitado a um plano secundário pela preeminência dada à vida contemplativa na tradição clássica. Significativas são, a esse respeito, entre outras, as obras dos dois representantes da escola de São Vítor (Vitorinos), da abadia de São Vítor em Paris. São elas o Didascalicon de Hugo de São Vítor (1096-1141) e o Liber exceptionum de Ricardo de São Vítor (1110-1173).
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