As estruturas fundamentais do homem segundo Lima Vaz

As estruturas fundamentais do homem segundo Lima Vaz
Publicado 2011/07/28
Author : Côn. Edson Oriolo
(RESUMO)


Henrique Cláudio de Lima Vaz sempre analisou e clarificou, à luz da tradição clássica, questões que desafiam filósofos e teólogos contemporâneos. O presente artigo pretende acentuar as estruturas fundamentais da unidade substancial do homem.

1. Considerações gerais
Desde a aurora da cultura ocidental a reflexão sobre o homem foi uma grande interrogação filosófica. A pesquisa sobre esse assunto, por conseguinte, um problema muito difícil, dada a enorme complexidade de nosso ser, o nosso grande dinamismo, as fortes e elevadas aspirações, as múltiplas expressões do bem e do mal, do ódio e do amor, da generosidade e da perversidade, do progresso e do retrocesso de que somos capazes.

Que a questão do homem seja um problema difícil, atesta-o claramente a História: realmente o homem tem sido objeto de pesquisa e de estudo, desde os primórdios da filosofia grega. Todos os grandes filósofos da Antiguidade, da Idade Média, da Época Moderna e do Período Contemporâneo estudaram-na com paixão. A partir do século XVIII, a ideia ocidental do homem entra em crise com o desenvolvimento das chamadas ciências do homem. Muitos pensadores, percebendo que a "idéia do homem" perdeu de modo aparentemente definitivo a sua unidade, tentaram recuperar uma certa ideia unitária do homem. Dentre os inúmeros filósofos que tentaram recuperar a idéia unitária do homem, pretenderemos salientar um pensador brasileiro que, à luz dos clássicos, recupera a concepção unitária do homem, propondo um roteiro metodológico que ajudará uma compreensão global do homem. Este filósofo chama-se Henrique Cláudio de Lima Vaz.

Para Lima Vaz, o homem é um ser de fronteira entre o mundo material e o mundo espiritual. A antropologia deve coordenar esses pólos sem privilegiar um em detrimento do outro. No entanto, o procedimento metodológico da antropologia segundo Lima Vaz deve seguir três momentos na sua organização sistemática: o plano da pré-compreensão, o plano da compreensão explicativa e o plano da compreensão filosófica (ou transcendental). Ele retoma neste procedimento metodológico da antropologia os momentos clássicos da análise aristotélica do saber, que são o objeto, o conceito e o discurso, salientando algumas particularidades.

O primeiro momento refere-se ao homem enquanto objeto, mas que é também sujeito, ou seja, na sua objetivação pelo saber, ele permanece sujeito como tal.

O segundo momento é aquele no qual o conceito objeto assume, no nível da compreensão filosófica, a forma de categoria, em que a expressão do sujeito se dá no nível mais fundamental. Aqui o conceito exprime o objeto em si mesmo e o saber do sujeito sobre si mesmo, não segundo uma concretude empírica ou abstrata, próprio da pré-compreensão explicativa, mas aquela conceitual ou ontológica, específica da compreensão filosófica.

O terceiro e último momento é aquele que exprime um movimento lógico de constituição do sujeito, dando um significado ou sentido à experiência antropológica original. Segundo Lima Vaz, esta articulação é dialética, já que as categorias são suprassumidas em níveis de integração e unidade do sujeito, até atingir o nível da essência, isto é, do sujeito como totalidade ou como pessoa. 

Lima Vaz ressalta que, como ipse, o sujeito, enquanto auto-exprimir-se, relaciona-se com o outro, sendo essencial a abertura para que o outro seja igualmente compreendido na auto-expressão de si. A constituição do homem como sujeito encontra o seu conteúdo ab extra, uma vez que este não é o criador ou fonte do ser. O homem é essencialmente relação com a realidade ou com o ser que nela se manifesta nesta expressão

Nesta perspectiva, segundo o autor, vamos percorrer as estruturas fundamentais do homem. A estrutura somática, psíquica e espiritual.

2. Estrutura somática
Existe uma reflexão filosófica sobre o corpo em quase toda parte da história do pensamento. Percorrendo a história das concepções do homem, o fio condutor é o problema do corpo. Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás, Descartes, Sartre, Merleau-Ponty, e muitos outros ainda, desenvolveram metodologicamente ensaios e teses sobre o corpo.

A Somaticidade é componente fundamental do existir, do viver, do conhecer, do desejar, do ter. Ou seja, o corpo é elemento essencial do homem, sem ele o homem não pode se alimentar, não pode reproduzir-se, não pode aprender, não pode comunicar-se, não pode divertir-se. É mediante o corpo que o homem é um ser-no-mundo: "Être au monde à travers un corps". 9

No entanto, Lima Vaz determina três esferas de relação do homem com a realidade, a saber: a esfera da objetividade, da intersubjetividade e da transcendência. Em cada uma dessas esferas, observa-se a primazia de uma das estruturas integrantes da totalidade do ser-homem.

Na relação de objetividade, a primazia é dada ao corpo, na intersubjetividade ao psiquismo e na transcendência ao espírito.

A esfera de que trataremos neste momento é a da objetividade, na qual se dá a primazia do corpo próprio, enquanto "condição primeira de possibilidade" da nossa presença na realidade, na forma de uma abertura constitutiva no mundo.

Destarte (?), o homem relaciona-se com o mundo pelo seu corpo. Pelo corpo estou presente no meio do resto do mundo. O mundo que nos circunda se compõe de coisas que são corpos, e isto porque o homem se depara e entra em contato com aquilo que lhe é mais próximo. O homem está no mundo em situação fundamentalmente ativa ou é ser-no-mundo.

Para Lima Vaz, o corpo próprio não é corpo físico e biológico, ele transcende o nível físico e biológico. É o corpo vivido, ou o corpo-sujeito. O corpo próprio é o espaço-tempo propriamente humano.

Portanto, o corpo-humano se diferencia essencialmente do corpo não-humano, não pela sua composição química, mas porque o corpo não-humano é pura e simples exterioridade, enquanto que o corpo-humano é a exteriorização de uma realidade essencialmente interna e capaz de automanifestar-se: fato que se constata no seu comportamento diante do mundo e das coisas que o compõem.

Pelo corpo vivido, o homem começa a estruturar o espaço-tempo propriamente humano. Pelo corpo, o homem está no mundo em situação fundamentalmente ativa ou é ser-no-mundo. Ser corpo, segundo Lima Vaz, significa possuir notas espaço-temporais que permitam esse contato com a realidade. O homem pertence ao mundo visível, é corpo entre os corpos, mas não é corpo como os outros corpos: já que o corpo, mediante o qual ele participa do mundo criado e visível, é um "corpo humano" que o torna consciente da diversidade dos outros corpos. O corpo é o pólo imediato da presença do homem no mundo.

3. Estrutura psíquica
Ao tratar da estrutura somática, vimos que a passagem do estar-no-mundo se dá primeiramente pela passagem do espaço-tempo físico ao espaço-tempo humano.

Assim como existe uma vasta reflexão filosófica sobre o corpo, que percorre toda a história da filosofia ocidental, também em relação à estrutura psíquica do homem encontramos numerosa literatura filosófica. Na tradição ocidental, a estrutura psíquica passa por dois esquemas fundamentais: o esquema dual (relação alma-corpo), e o esquema trial (relação corpo-alma-espírito).

Para Lima Vaz, o corpo-sujeito é o pólo imediato da presença do homem no mundo. Portanto, sabendo que através do seu corpo o homem é um ser-no-mundo, o psiquismo está essencialmente voltado para o homem-sujeito. A presença psíquica é mediatizada pela presença somática, e essa mediação permite o estabelecimento de uma distância entre o sujeito e o mundo, sendo este não apenas captado, mas também interpretado pela atividade psíquica. Esta é a posição mediadora entre a presença imediata no mundo pelo "corpo próprio" e a interioridade absoluta pelo espírito.

O psíquico se organiza segundo um espaço-tempo que não coincide com o espaço-tempo físico-biológico, ao qual está ligado o corpo, mas tem suas dimensões e seu ritmo próprios. Ele ordena o fluxo da vida psíquica em termos de percepção, representação, memória, emoções, pulsões. Sendo uma categoria ontológica do ser-homem passa a ser a interiorização do mundo em nós. O psiquismo é manifestação do nosso ser enquanto inserido no tempo. É o sujeito exprimindo-se na forma de um Eu psicológico, unificador de vivências, estados e comportamentos. O Eu se apresenta como sujeito ou pólo unificador da vida psíquica.

Para o psiquismo comunicar, constitui-se a linguagem, que é a forma específica de comunicação entre os sujeitos (relação intersubjetiva), e que investe igualmente na tradução psíquica do mundo exterior, conferindo uma dimensão psíquica ao acesso às coisas pela relação objetiva. 

Lima Vaz diz que o psiquismo é a captação do mundo exterior, é o momento em que interiorizamos o mundo em nós. É a reconstrução desse mundo exterior num mundo interior que se edifica sobre dois eixos: o imaginário e o afetivo, ou o eixo da representação e o eixo da pulsão.

4. Estrutura espiritual
A estrutura espiritual atinge o ápice do ser humano. É uma estrutura transcendental. Uma categoria ontológica. É nesse nível que o ser humano abre-se para a transcendência.

  1. Sobre a noção de espírito, quatro temas fundamentais se entrecruzam ao longo da filosofia ocidental. Em primeiro lugar, pneúma que significa sopro, espiro. Em sentido figurado, significa respiro, espírito, mente. O espírito aparece como princípio interno de vida ou como forma superior da vida.
  2. Em segundo lugar, temos o termo grego noùs que significa uma atividade de contemplação.
  3. Temos o termo sýnesis que significa vida, inteligência, consciência-de-si.
  4. Por fim, o termo lógos estabelece a relação entre espírito e palavra (lógos), sendo a palavra inteligível a manifestação do espírito que confere uma vida propriamente espiritual à palavra proferida, sobretudo no diálogo, e à palavra escrita. 

Mas, segundo Lima Vaz, o homem se autocompreende como espírito: essa consciência não é simplesmente redutível ao somático ou ao psíquico, sendo originariamente espiritual, e sendo os atos que a especificam, atos espirituais em sentido próprio. A diferenciação desses atos se dá conforme a própria diferenciação da cultura nas suas diversas formas: religião, arte, saber, vida social, etc.

No entanto é pelo espírito que o homem está presente em si mesmo e está presente no mundo. É pelo espírito que nos universalizamos, saímos de nós para compreender a totalidade das coisas. É pelo espírito que o homem transcende a sua contingência empiricamente objetiva (expressão somática) como a sua contingência subjetiva (expressão psíquica).

Portanto, conclui Lima Vaz, a presença do homem no mundo humano dos seus semelhantes, ou o seu ser-com, só é possível como presença espiritual. A presença espiritual, como presença reflexiva, confere à linguagem sua forma especificamente humana de manifestação.

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